Lucas inicia seu Evangelho deslocando nosso olhar do palácio de Herodes para a casa de um casal anônimo. Isso porque a história da redenção avança, não pelo brilho dos tronos, mas pela fidelidade silenciosa daqueles que temem ao Senhor.
Em Lucas 1.5–7, encontramos um retrato conciso e profundo: contexto político sombrio, corrupção religiosa em alta, um casal justo e irrepreensível, e, paradoxalmente, ferido por uma dor persistente — a esterilidade em idade avançada. Este quadro prepara o leitor para compreender que a intervenção de Deus não depende das estruturas do poder, mas ocorre no espaço da esperança que é perseverante.
Este estudo examina profundamente o pano de fundo histórico, as lições do texto, e as implicações de uma fé que permanece firme mesmo quando o silêncio divino parece ocupar o centro da nossa vida.
TEXTO-BASE
Lucas 1.5-7
⁵ Existiu, no tempo de Herodes, rei da Judeia, um sacerdote, chamado Zacarias, da ordem de Abias, e cuja mulher era das filhas de Arão; o nome dela era Isabel. ⁶ E eram ambos justos perante Deus, vivendo irrepreensivelmente em todos os mandamentos e preceitos do Senhor. ⁷ E não tinham filhos, porque Isabel era estéril, e ambos eram avançados em idade.
QUANDO VIVERAM: UM CONTEXTO DE CORRUPÇÃO (v. 5)
Zacarias e Isabel viveram “no tempo de Herodes, rei da Judeia”. Esse Herodes é aquele conhecido como “o Grande”, que governou a Judeia de 37 a 4 a.C. Os eventos descritos em Lucas 1.5-7 aconteceram perto do final desse reinado.
Herodes, Poder e Violência:
Herodes, o Grande, era um idumeu (edomita) e um soberano cruel que se agarrava ao poder a qualquer custo. Embora tenha sido o patrono de grandes obras como a ampliação do Templo, o porto de Cesareia e a fortaleza de Massada, sua ambição e lascívia pelo poder o levaram a cometer muitas atrocidades.
Seu governo foi marcado por tirania e paranoia, como o assassinato de sua esposa Mariamme I e três de seus próprios filhos — Alexandre, Aristóbulo e Antípatro.
Nesse sentido, não é de se estranhar o fato de ele ter ordenado o massacre dos meninos de Belém (cf. Mt 2.13-18). Ele era um homem tão astuto, cruel e perverso que o próprio imperador César Augusto chegou a dizer que “preferiria ser um porco a ser um filho de Herodes”.¹
Corrupção Espiritual e Religiosa:
Em sua campanha de 37 a.C., Herodes “insensivelmente afogou o último herdeiro do sumo sacerdócio hasmoneano, um jovem de 17 anos. Ele, então, mandou matar todos os parentes do rapaz. No lugar dos sumo sacerdotes hasmoneanos, ele indicou sacerdotes comuns, escolhidos segundo a lealdade que tinham a ele. Sua corrupção do sumo sacerdócio era um pecado imperdoável para muitos judeus”.²
O cenário evidente era de obscurantismo espiritual e de decadência moral. Líderes religiosos estavam rendidos à tradição morta ou haviam se capitulado à sedução do lucro, transformando a casa de Deus num covil de salteadores. Essa profanação da linhagem sacerdotal levou grupos como os sectários de Qumrã a romperem completamente com Jerusalém, em resposta à corrupção do sacerdócio.
COMO VIVERAM: FIÉIS EM MEIO À CORRUPÇÃO (v. 6)
Em forte contraste com o ambiente corrupto de Herodes e do sacerdócio nomeado por ele, Zacarias e Isabel são apresentados como um casal ideal. Zacarias era um sacerdote pertencente à ordem de Abias (I Cr 24.10), um dos 24 grupos que trabalhavam no templo por escala semianual.
Isabel, por sua vez, era uma das filhas de Arão, possuindo, assim como seu marido, uma estirpe sacerdotal impecável, o que era altamente valorizado no costume judaico. Lucas destaca, porém, algumas características ainda mais valiosas acerca deles:
• Em primeiro lugar, eles eram justos aos olhos de Deus. Essa é a linguagem do Antigo Testamento para designar aqueles que observavam as Leis de Deus com um coração puro, evidenciando sua fidelidade e compromisso para com Ele.
• Em segundo lugar, eles eram irrepreensíveis aos olhos de Deus. Isso significa que eles viviam de acordo com um padrão que agradava ao Senhor. Além disso, diante dos homens a conduta deles se mostrava coerente, pois viviam em retidão. Cabe, no entanto, ressaltar que isso não significa que eles não pecavam, mas que, quando pecavam, cumpriam também para com a exigência da Lei.
Tudo isso demonstra que, mesmo em meio à corrupção generalizada, é possível permanecermos fiéis ao nosso Deus. O mesmo aconteceu com Noé: Ele “era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus” (Gn 6.9).
COMO SOFRERAM: A AFLIÇÃO EM MEIO À FIDELIDADE (v. 7)
Apesar da linhagem impecável e da justiça irrepreensível que demonstravam diante de Deus e dos homens, a vida de Zacarias e Isabel tinha seus desapontamentos. A fonte específica do sofrimento mencionada em Lucas 1.7 é que eles não tinham filhos, “porque Isabel era estéril, e ambos eram avançados em idade”.
O Peso da Infertilidade:
Em muitos contextos do Antigo Testamento e do judaísmo do Segundo Templo, a falta de filhos e a infertilidade eram consideradas como um sinal do desfavor de Deus. A situação era tão séria que lemos, por exemplo, Raquel dizendo a Jacó: “Dá-me filhos, senão morro” (Gn 30.1).
Nesse sentido, para um casal em idade avançada, não ter filhos era um grande infortúnio, pois era algo percebido como de extremo sofrimento e razão de vergonha. Algumas tradições rabínicas chegaram até mesmo a discutir a possibilidade do divórcio ser aplicado após um longo período sem filhos. Diante de tais fatos, a esterilidade de um casal fiel a Deus pareceria irônica.
O Sofrimento na Jornada de Fé:
Esse relato – como tantos outros – ilustra que a vida de fé não é isenta de sofrimentos. Fidelidade a Deus não significa imunidade contra a dor.
Mesmo que Zacarias e Isabel fossem apresentados como o ideal judaico de devoção, eles também tiveram parte nas aflições da vida.
Afinal de contas, o justo sofre (Sl 73), e, ainda assim, “as aflições do tempo presente não podem ser comparadas com a glória a ser revelada” (Rm 8.18). Em Zacarias e Isabel, a dor não impede a obediência. Embora o texto-base se concentre em sua condição (v. 7), o contexto subsequente (cf. Lc 1.13) revela que essa obediência também era acompanhada de oração persistente.
A dor não os silenciou; ela parece ter alimentado sua súplica. Há clareza no fato de que a obediência e a oração perseverante abrem espaço à intervenção divina que, de fato, chegará nos versículos seguintes, quando um grande milagre acontece.
LIÇÕES E APLICAÇÕES DO RELATO
A Integridade é Possível Mesmo em Ambientes de Corrupção. O retrato apresentado por Lucas encoraja: é possível viver de maneira justa e irrepreensível mesmo quando as estruturas ao redor estejam corrompidas. Podemos seguir o exemplo de Zacarias e Isabel, pois, na realidade, fomos chamados para ser sal da terra e luz do mundo.
A Fidelidade Não Elimina as Aflições da Vida. A ausência de filhos não desmente a justiça de Zacarias e Isabel. A fé cristã rejeita a equação simplista apresentada pela Teologia da Prosperidade e da Confissão Positiva. O sofrimento não significa, necessariamente, ausência de fé ou existência de pecado. Jesus mesmo nos garantiu: “No mundo tereis aflições” (Jo 16.33).
Deus Nunca Abandona o Fiel. Ainda que o cristão esteja sujeito às grandes aflições da vida, nós não as enfrentamos sozinhos. Jesus estava na festa de casamento quando faltou o vinho. Ele também estava no barco quando adveio uma grande tempestade. Lembremo-nos de Sua promessa: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28.20).
CONCLUSÃO
Lucas abre a narrativa do Evangelho nos levando para dentro do lar de dois servos fiéis. Ali, a justiça diante de Deus e a integridade pública coabitam com uma dor antiga e espera prolongada. É precisamente nesse terreno que o Deus da aliança escolhe agir.
Ele visita a esterilidade, desfaz o opróbrio e opera o milagre.
Desse casal exemplar, nasce João Batista, o Precursor do Messias. Assim, aprendemos que a história da salvação não progride pela força dos impérios, e sim pela obediência e perseverança de homens e mulheres que, ainda sofrendo, mantêm-se firmes diante do Senhor.
Em qualquer tempo — inclusive no nosso — Deus preserva um povo que O serve com integridade e espera, em santidade, a Sua doce e soberana intervenção.
Christo Nihil Praeponere — A nada dar mais valor que a Cristo
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NOTAS
¹ LOPES, Hernandes Dias. Lucas – Jesus, o Homem Perfeito. Hagnos, 2019, p. 37.
² NEALE, David. A. Novo Comentário Bíblico Beacon – Lucas 1-9. Acadêmico, 2015, p. 68.

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