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Deus Como Pura Realidade: A Autoexistência Divina

Figura de um homem com vestes antigas e cajado caminhando por uma trilha montanhosa em direção a uma intensa luz dourada nos céus, simbolizando o encontro com a autoexistência e glória de Deus.
O que significa dizer que Deus é “pura realidade”? Essa afirmação, embora profunda, é muitas vezes ignorada por grande parte dos cristãos. Em um mundo em constante mudança, onde tudo é transitório e frágil, a verdade de que Deus é o único Ser absolutamente necessário, autoexistente e eterno, nos oferece um fundamento sólido para a fé, a adoração e a vida espiritual.

Dizer que Deus é pura realidade significa que Ele não apenas existe, mas que não pode deixar de existir. Sua existência é essencial, absoluta e independente. Ele não foi causado por nada, não deriva sua existência de nenhuma outra fonte e não depende de ninguém ou de nada para continuar sendo o que é. Diferente de toda a criação — que é contingente, dependente e finita — Deus simplesmente é.

Essa doutrina se refere a um dos atributos metafísicos de Deus e está profundamente enraizada nas Escrituras, sendo também amplamente defendida ao longo de toda a história da Igreja. Neste estudo, exploraremos essa verdade sob quatro aspectos fundamentais:

(1) Deus existe independente de tudo o mais; (2) Deus é a fonte da existência de todas as coisas; (3) Deus é o “EU SOU” eterno e absoluto; e (4) os fundamentos teológicos que confirmam a realidade necessária do Ser divino.

1. DEUS EXISTE INDEPENDENTE DE TUDO O MAIS


A Bíblia não se inicia com uma defesa da existência de Deus, ao contrário, ela o afirma de forma clara e categórica. Deus não apenas existe, Ele é o próprio Criador do Universo: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1).

Esse versículo inaugural já estabelece a verdade fundamental de que Deus é anterior à criação. Ele já existia antes de todas as coisas e, portanto, é independente do tempo, do espaço e da matéria. Paulo afirma em Colossenses 1.17 que “Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele”. O salmista também confessa essa realidade com reverência:

“Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses a terra e o mundo, sim, de eternidade a eternidade, tu és Deus” (Sl 90.2).

Ora, esses e muitos outros textos bíblicos não apenas afirmam a eternidade divina, mas destacam que a existência de Deus não está condicionada a nenhum fator externo. Diferente de tudo aquilo que conhecemos — que tem começo, processo de desenvolvimento e fim — Deus não se encaixa nessa categoria.

Ele é eterno, imutável, e não depende de nada para ser quem é. Ele não possui potencial de não ser, pois sua essência é existir plenamente.

Essa realidade nos leva a reconhecer que todas as demais coisas existem por Ele e dependem d’Ele, mas Ele mesmo não depende de absolutamente nada. Em outras palavras, Deus existe independente de tudo o mais.

2. DEUS É A FONTE DA EXISTÊNCIA DE TODAS AS COISAS


Se Deus não depende de nada para existir, todas as demais coisas, por outro lado, existem por causa d’Ele. O Universo e tudo que nele há foram criados por um ato soberano e voluntário de Deus. Em João 1.1-3, lemos que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.”

Essa afirmação revela que Deus, através do Verbo (para saber mais, clique aqui), trouxe todas as coisas à existência. A criação é um reflexo do Seu poder e da Sua soberania. Nada do que existe surgiu por acaso ou de forma espontânea — tudo foi feito por Deus e depende d’Ele para continuar existindo.

O apóstolo Paulo também declara que “Deus não é servido por mãos de homens, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas” (At 17.25). Aos colossenses ele também afirma que “Nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis... tudo foi criado por ele e para ele” (Cl 1.16).

Porque dele, e por ele, e para ele, são todas as coisas (Rm 11.36).

Essas passagens bíblicas demonstram que Deus não apenas é o Criador, mas também o Sustentador de todas as coisas. Ele não criou o Universo e o deixou entregue ao acaso, seguindo o seu próprio curso, como dizem os deístas; Ele o sustenta ativamente — e, sem Sua vontade soberana, nada subsiste.

Como afirmou Agostinho (354–430), “Deus é o Ser Absoluto e, portanto, todos os outros seres que são relativos foram feitos por Ele.”¹ Isso torna evidente que todo ser criado é dependente. Deus, por outro lado, é o único Ser que existe em si mesmo. Ele é a Causa não-causada de tudo o que existe. Ele é a razão de todos os demais seres (animais, homens, anjos), e sem Ele, nada mais existiria.

3. DEUS É A PURA EXISTÊNCIA: O “EU SOU” ETERNO E IMUTÁVEL


Um dos textos mais importantes para a compreensão da autoexistência de Deus encontra-se em Êxodo 3.14. Quando Moisés pergunta qual é o nome de Deus, Ele responde: “EU SOU O QUE SOU. Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós.”

Essa resposta de Deus não é apenas um nome, mas uma revelação profunda de Sua natureza e essência. O termo hebraico usado aqui (Ehyeh Asher Ehyeh), conforme explica Leo G. Cox (1912-2001), encontra-se num “tempo indefinido, podendo significar igualmente o passado, o presente ou o futuro.”² É, portanto, uma afirmação de existência absoluta, contínua, inalterável.

Em seu comentário bíblico, Matthew Henry (1662-1714) escreveu acerca deste versículo que “Deus é autoexistente; Ele tem a sua existência em si mesmo, e não depende de ninguém. O maior e melhor homem do mundo deve dizer: ‘Pela graça de Deus, sou o que sou’. Mas Deus diz de uma forma absoluta – pois Ele é mais do que qualquer criatura, homem ou anjo, e só Ele pode dizer – ‘Eu sou o que sou’.”³

Ao dizer “EU SOU”, Deus está se revelando como Aquele que não tem princípio nem fim, que não muda, que não depende, que simplesmente é. Essa mesma linguagem é retomada por Jesus em João 8.58: “Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, EU SOU.”

Tal afirmação de Jesus não apenas evoca Êxodo 3.14, como o faz de forma proposital, identificando-se com o próprio Deus eterno.

Ao dizer ‘EU SOU, Cristo revela que compartilha da mesma natureza divina — é o próprio Deus encarnado, o Verbo eterno que se fez carne e habitou entre nós.

Por causa disso, os judeus que o ouviram “pegaram em pedras para lhe atirarem(Jo 8.59), pois apenas Deus poderia fazer tal declaração, mas eles não O reconheciam como tal.

4. FUNDAMENTAÇÃO TEOLÓGICA PARA A PURA REALIDADE DE DEUS


Diversos teólogos cristãos defenderam, ao longo da história, a doutrina da pura realidade (autoexistência divina) como aspecto essencial de uma teologia bíblica e coerente. Este tópico, embora mais difícil de compreender, se faz importante a fim de ressaltar a unidade histórica que vem desde os pais da Igreja até os teólogos da pós-reforma.

Um dos argumentos mais clássicos sobre o tema, desenvolvido com profundidade por Tomás de Aquino, é o cosmológico:

Tudo aquilo que tem um começo, teve também uma causa. O Universo teve um começo, logo, teve uma causa. Essa causa precisa ser externa ao Universo, eterna e imutável — ou seja, Deus.

Nesse sentido, o que não tem causa da sua existência não é realizado (causado) por outro. E o que não é realizado (causado) por outro, não tem potencialidade para a existência ou para a não-existência. Portanto, Deus tão somente existe, pura e simplesmente. O que se conclui com isso é que tem de haver um Realizador Primeiro e Não-Realizado de todos os outros seres que são realizados.

Sendo assim, esse Realizador Primeiro e Não-Realizado tem de ser a Pura Realidade, pois se tivesse alguma potencialidade, então teria tido a necessidade de um realizador (causa). Neste mesmo sentido, partindo de seres contingentes para um Ser necessário, Norman Geisler (1932–2019) também argumenta:

“Se um ser contingente existe, então um Ser necessário também tem de existir. Caso contrário, a não-existência poderia ser a causa da existência, pois o mero potencial para ser não explica porque tal ser existe. Por conseguinte, no final das contas, tem de haver um Ser que não pode não existir para dar base a todos os seres que podem não existir, mas existem.”⁴

Isso significa que se existem seres contingentes — ou seja, seres que existem mas poderiam não existir — então tem de haver um fundamento absoluto, um Ser necessário que seja a base de toda a realidade. Esse Ser necessário é Deus. Caso contrário, a não-existência poderia ser a causa da existência. Todavia, isso é absurdo, visto que o nada não pode causar algo — é nada.

Só algo que existe pode causar existência.

Outro pastor, William Shedd (1820–1894), destacou que “a autoexistência de Deus denota que a base do seu ser está Nele. Deus é o Ser não-causado, e neste aspecto, difere de todos os outros seres.”⁵ Essa distinção é crucial: tudo o que conhecemos é causado, mutável e dependente. Deus, porém, é diferente de toda a criação — Ele é o fundamento da própria existência.

CONCLUSÃO


A doutrina da autoexistência de Deus nos leva a contemplar a majestade e a singularidade do Ser divino. Deus não é uma força impessoal nem uma projeção da mente humana. Ele é o único Ser necessário, eterno e absoluto — a pura realidade, a Causa não-causada de tudo o mais que existe, ou seja, sem Ele, nada mais haveria.

Entender essa verdade fortalece a nossa fé: ela deixa de ser apenas uma crença subjetiva e se torna uma confiança inabalável em um Deus que é, que sempre foi, e que sempre será. Em tempos de dúvidas, crises e mudanças, a existência autoexistente de Deus nos dá segurança, firmeza e paz.

Sendo assim, como escrito pelo profeta Oséias, “conheçamos e prossigamos em conhecer ao Senhor” (Os 6.3).

Que a revelação do “EU SOU” continue nos conduzindo a uma vida de reverência, dependência e adoração ao único Deus verdadeiro, fundamento de tudo o que existe, e Aquele em quem encontramos sentido, propósito e esperança eterna.

Christo Nihil Praeponere — A nada dar mais valor que a Cristo


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NOTAS


¹ GEISLER, Norman. Teologia Sistemática Vol 1. CPAD, 2025, p. 575.
² COX, Leo G. Comentário Bíblico Beacon Vol 1. CPAD, 2016, p. 146.
³ HENRY, Matthew. Comentário Bíblico Antigo Testamento Vol 1. CPAD, 2020, p. 235.
⁴ GEISLER, Norman, op. cit., p. 573.
⁵ GEISLER, Norman, op. cit., p. 599.

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